Tuesday, October 1, 2013

01_Sangue

© Herberto Smith
sangue_Nada a não ser sangue em mãos fechadas num objecto contundente enchia o enquadramento do que era possível ver. Um enorme clarão vermelho passou a controlar a máquina do tempo que ecoava em longe daquele pequeno anexo de casa própria. Nem o tempo nem a imagem conseguiam apagar o cheiro ferroso que oxidava tudo na divisão quatro paredes sem janelas Visto de cima, como num filme, a linha de luz que invadia a frincha através do estuque do teto iluminava cirurgicamente o sobrolho que, em câmara lenta, chocava agora com o cimento do chão. Regressado a 1981 Chegou ao pé do Pai e abriu as mãos assim (5+5) Sr. Pai, tem aqui os meus 10 dedos, nenhum é igual Lá porque o meu irmão fez o que fez Não quer dizer que eu o repita. Nesse preciso momento o Acaso renasceu. Regressar a esse preciso momento de nascimento fê-lo sorrir, com novo tipo de músculo Apesar de totalmente escuro, o seu sorriso iluminava a divisão destacando-a como moldura de museu num quadro acabado de pintar Acaso descobrira o elixir da juventude e agora voltava a sentir-se vivo Não se sentia assim há mais de vinte anos Então o clarão branco cobriu tudo, nem tempo indicativo nem mais-que-perfeito faziam sentido neste clarão. O branco preenchia toda a existência de Acaso. Perdido no tempo Acaso sentiu-se embalado entre o inspirar e o expirar. Estava agora a caminho do chão junto à sua primeira vítima. No chão e sem sentido de tempo ou posição de conforto adormeceu. Lado a lado vítima, Acaso e sangue já não ouvem a pá francesa a chegar sonoramente ao cimento.

Sunday, September 1, 2013

02_Viagem

© Herberto Smith
viagem_Não há muitas coisas para dizer sobre uma viagem para além de que ela começa antes de começar. Assim é a história da vida do Acaso, segundo filho de um Pai que já tinha feito luto pelo primeiro, nasceu quase que órfão. Chamo-me Salvador Acaso e não sei bem que idade tenho. Pelo espelho acho-me com 38 anos agora mas isso não me preocupa na minha apresentação hoje de manhã pela primeira vez naquela padaria. Entrando pela porta fechada mas com sinal de aberto afixado desabotoei os muitos botões da casaca que nesse dia decidi usar. Era frio e amplo o espaço, ao fundo do balcão de mármore a mulher de gorda um pouco olhava-me como primeira vez que me via em desconfiança. Estava agora junto a ela, mais ou menos a um braço de a agarrar e de a fazer conhecer-me em todo e num instante, mas não era esse o ponto objectivo que ali me tinha trazido, transportado pelo 732. Tanta viagem para comprar um carcaça pensaria ela se assim me tivesse apresentado, mas nada disso sucedia, apenas a espera interminável por um bom dia me fez estancar à mão de a semear. Conversava com uma vizinha, provavelmente daquelas que apesar de viver em sua própria casa habitava todas as outras casas da rua e outras até mais longínquas. Dona Virginia sustentou aquela conversa sobre o preço das coisas que nos alimentam, respondendo sempre Isto nunca esteve tão mal, No meu tempo o povo saía à rua e resolvia tudo à foiçada e gadanhada, Se eu ainda tivesse forças e este reumático não me impedisse os passos ía à manifestação. Com mãos e peso nelas ao balcão Dona Virgínia fez-me esperar pela pergunta até não poder mais Bom dia. Ambas olharam para este pequeno insulto cortante de conversas, para quem tem tempo para elas, reparando em mim por detrás da minha voz. Pararam e em pausa esperaram a continuação das minhas reticências… da boca nada me saiu.

Thursday, August 1, 2013

03_Casa

© Herberto Smith
casa_Resposta dada avancei para o meu verdadeiro objetivo. Na padaria se lá tivesse ficado, ouviria de certeza aquele diálogo feminino avançar na minha direção Que belo rapaz ele era, Se não fosse aquela história do irmão, Como é que ainda tem coragem para aqui voltar, Se calhar veio buscar pão, Achas que devíamos ligar ao Sr.Antero? Ó mulher também não é caso de polícia, ele é bom rapaz, sai à mãe, isso tenho a certeza. Não. Duvido que a Dona Virgínia ainda se lembre desses tempos, afinal já passaram pelo calendário pelo menos uns vinte anos depois da última vez que passei por lá para lhe pedir um de oferta. Duvido. Avancei entre carros cobertos do pó amarelo dos pinheiros que insistem em relembrar-me a dificuldade de comer pinhões nas pinhas de um pinhal. Apesar das memórias sei que nada me pode impedir de voltar ao sítio onde tudo aconteceu. Será que ele está à minha espera e de que maneira me irá reconhecer, Como aquele que partiu ou como aquele que voltou. Não sei. Entre um Ford Capri laranja e um Datsun 510 ferrugem lá está ele e no meio da rua. Não esperava vê-lo tão longe de casa, sempre o soube atreito a passeios matinais e apesar de ser quase hora de almoço ainda não tinha ouvido a sirene dos bombeiros. E ali estava ela, naquele preciso momento a sirene, os carros do antigamente e o Antero, quase que sincronizados centraram a atenção em mim. O Antero e dois vizinhos tentavam ligar o Datsun ao Capri que pegava agora roncando pela rua toda em sicronia tonal com a sirene dos bombeiros. Como um coro polifónico a atenção dos mecânicos passou diretamente para mim. Nesse momento o meu motor afogou-se e começei a chorar. Chorava agora como da última vez que tinha visto aquele quadro. Sem escovas que me limpassem o pára-brisas, oiço a voz grave e rádiofónica do Antero. Olha o Rei!

Monday, July 1, 2013

04_Antero

© Herberto Smith
antero_Abraçámo-nos como só os homens que se conhecem se sabem abraçar. Em reconhecimento atraímos todos os que passavam na rua àquela hora, poucos eram, mas nenhum recusou o abraço, o aperto de mão, a pancadinha nas costas, o calduço no puto que neste caso era eu, ou mesmo o beliscão que dois ou três pediram em si próprios para cumprir a prova definitiva da realidade. O Salvador tinha regressado e estava um homem, Estás um homem pá, Cresceste, Nem pareces tu, Ó Antero eu não te disse que ele voltava. Tantas perguntas. Tantas daquela curiosidade que só os que muito passaram sabem passar, tantas e tão pouco tempo para as responder a todas. Queria responder a todos de maneira que os fizesse sentir bem. Muitos deles conheciam-me do tempo em que dei os primeiros passos, em que dei as primeiras quedas de bicicleta, em que sem saber me meti em grandes sarilhos com o merceiro da esquina ou com a Dona Virginia da Padaria. Carcaças com doce de tomate precisam de pelo menos uma carcaça e um quilo de tomates com um quilo de açúcar numa panela. A panela só a pedi emprestada e ninguém leva a mal as carolices dos putos e todos daqueles homens, agora maduros, todos sem excepção foram pequenos ladrões de pequenos tesouros que apesar de baratos em todas as épocas são mais valiosos quando subtraídos, numa aventura, ao seus verdadeiros proprietários. Assim estávamos entre abraços e amaços quando o Antero interrompeu. Nada tinha dito depois da primeira frase ao avistar-me, Deixem-me um pedaço do Rei para mim. Ninguém contrariava o Antero desde que foi o primeiro a habitar ali em 49, todos o sabiam sábio e patriarca do bairro. Apesar de ser na cidade aquilo ali era uma aldeia. No silêncio com tosses de velhotes, o Antero por baixo dos seus olhos azuis a 1 metro e 90 centímetros do chão ordenou: Vamos almoçar, pago eu.

Saturday, June 1, 2013

05_Digestivos

© Herberto Smith
digestivos_Já tinham sido pedidos quatro, duas amêndoas amargas e duas de aguardente velha que o Antero percebeu agora ser também a minha Aguardente Velha. Tantas as respostas que surgiram que as perguntas foram inexistentes ao longo de todo o almoço no Furão, logo no dia do Bacalhau à Braz e do Cozido à Portuguesa, o que fizeram daquela quinta-feira uma das melhores quintas de todo o mês. Tanta conversa entrecortada por travessas de Cozido, doses extra de enchidos, jarros de vinho, piadas ao sportinguismo evangélico do Antero, nunca nos afastou do tema principal O que é que eu estava ali a fazer? Mas em nenhum momento pergunta feita e eu não queria desfazer aquele rendilhado de puros prazeres típicos de um grupo de amigos, e o Antero respeitou isso e nunca me perguntou nada. Na televisão do Furão as notícias da tarde mostravam os planos gerais e as tradicionais entrevistas na manifestação que fazia o país todo pensar em mudança. O Juvenal metia-se com o Pires sempre que podia Agora vais ter de começar a trabalhar vais ver. O Pires sempre teve a mesma profissão e todos o conheciam como aposentado da função pública, mas nos dias que correm o Pires sentia-se mais como um antigo combatente já sem forças para lutar. Ó Juvenal deixa lá o homem que ele já não tem nada a ver com essas coisas, e para além de ter a triste ideia de ser do Benfica é um grande homem. Mas e o Juvenal? Eu não tinha aberto a boca até àquele momento e todos olharam para mim com ar de que eu poderia ter dito qualquer coisa e escolhi perguntar sobre o único tabu daquela mesa. Perante o espanto o Antero tomou a palavra para fechar logo ali a ferida, Este rapaz não mudou mesmo nada, Salvador como tu bem sabes o Juvenal é um herói de banda desenhada e nunca teve de trabalhar um só dia na vida! Pausa de cinco segundos e a mesa explode em gargalhadas fazendo com que muitos no Furão se rissem sem saberem bem do quê. Estava já o Pires a pedir uma segunda amêndoa amarga quando tudo mudou. Entrada no restaurante e olhos postos na nossa mesa ninguém a viu chegar até àquele momento. Boa tarde rapazes, o que estão a fazer na minha mesa?

Wednesday, May 1, 2013

06_Ruínas

© Herberto Smith
ruínas_Ali estavam elas dois mil anos e quatro horas depois. Nós fechados em camioneta da rodoviária nacional a cheirar a gasóleo e sande de panado desde Lisboa fizemos com que o cheiro da erva acabada de cortar fosse o nosso bálsamo anti enjoo tomado logo ali à pressa. À falta de melhor e ainda agarrado ao corrimão no habitual processo de descompressão não conseguia deixar de lhe dar importância a ela. A Júlia seria sempre o meu primeiro amor e as ruínas daquela cidade romana pareciam saber disso mesmo. Júlia era nome de grandiosidade tornada trágica, seja por cheiros de perfume ou por ingenuidades adolescentes, dois em cada três de nós estavam apaixonados por ela. Nada de anormal não fosse ela saber que eu era um dos dois num grupo de três colegas sem mota, nem anos repetidos no currículo. A Júlia só namorava com rapazes velhos demais para ainda andarem na escola, espertos demais para lá irem todos os dias e experientes o suficiente para nunca mostrarem abertamente interesse nela. Júlia sabia tudo isso e pior era inteligente como só imaginava eu poderem ser as miúdas desinteressantes da turma. Salvador, ainda hoje me arrepia o tom com que ela disse pela primeira vez esta palavra a menos de um metro e meio de mim. Salvador sabes que os romanos fizeram tudo isto de propósito? Como numa quebra de tensão, e eram muitas na altura em que crescia vinte centímetros por ano, o som do meu nome estava misturado como só talvez na infância imaginava a minha mãe dizer. Salvador apesar de o sentir repetido mil vezes só foi emanado uma vez em sereia de fazer tremer o mais forte dos companheiros de Ulisses. Salvador? Perguntava agora perante a minha apatia tísica. Não conseguia olhar para ela nem responder, aqui algo foi diferente naquilo que Júlia costumava fazer, ninguém lhe dirigiu a palavra e mesmo assim ela continou. Salvador? Sentes-te bem? Muito. Ainda hoje não sei porque respondi muito mas sei que respondi muito na palavra muito. E ela sorrindo e se calhar só para me ajudar agarrou-me na mão e levou-me da camioneta com cheiro a sande de panado para dentro das ruínas, nesse momento nada me poderia arruinar. Salvador e Júlia entravam nas ruínas, dois mil anos e quatro horas depois da fundação de Conímbriga, de mãos dadas. A turma nunca mais seria a mesma e eu morri e ressuscitei ali mesmo sem saber muito bem o que isso queria dizer no meu futuro. Hoje sei.

Monday, April 1, 2013

07_Anos


© Herberto Smith
anos_Tantos depois ali estava ela novamente. Já não era nova nem velha a Júlia, mas a minha reacção tímida mantinha-se como exactamente dantes, não conseguia olhar para ela. O tempo tinha parado e tantos e tantos anos depois reuni forças para não ficar calado. Tantas viagens, tantas pessoas, tantas experiências para conseguir um Olá Júlia. Olá Salvador. Estou agora no sofá do Antero que me conta que muitas coisas aconteceram entre a chegada da Júlia à nossa mesa no Furão e o momento em que me sentei naquele sofá. Nada. Não me lembro de nada. Da única vez que desmaiei na minha vida foi assim. Estou em ponto A e de seguida estou em ponto B, da viagem C que fiz entre ambos os pontos o meu cérebro não registou nada. O Antero continua a contar-me da conversa acontecida em que o Pires e o Juvenal insistiram que ela se sentasse na nossa mesa, em que ele próprio Antero lhe perguntou pelo marido e pelos dois filhos de 9 e 4 anos respectivamente, de como ela lhes mostrou prontamente fotografias recentes de ambos, de como o Pires falou da paixão adolescente que tinha tido pela mãe dela, de como ela se riu e sem mágoa admitiu a falta que a mãe falecida um ano antes lhe fazia, de como até o Sr. Antunes do Furão lhe veio trazer o frango assado para ela levar para o marido que trabalhava em casa na garagem num projeto qualquer para exportação de móveis. Nada. Não fui capaz de dizer nada. Vinte anos antes ela teria insistido comigo para que falasse, teria-me levado para fora do restaurante e entrado directamente no pinhal sempre a contar-me histórias sobre as pedras os caminhos e as árvores que outros antes de nós ali tinham plantado. Nada. Nada disso aconteceu e eu sentia-me agora e de novo o puto desinteressante da camioneta da rodoviária nacional com cheiro a sande de panado. Ouvido tudo, estava finalmente pronto para contar ao Antero a razão pela qual tinha voltado ali tantos anos depois, exatamente no meu próprio dia de anos. O Antero sentiu isso mesmo e foi buscar a garrafa que mantinha escondida atrás da cómoda. Dois copos, garrafa aberta, o Antero sentava-se Bom, diz lá rapaz, o que te trouxe aqui hoje?

Friday, March 1, 2013

08_Mãe


© Herberto Smith

mãe_Quero vê-la. Acho que finalmente estou preparado para vê-la. Sei que me vais dizer que ainda é cedo, mas eu quero vê-la agora e não pensar mais nisso, de uma vez por todas eu e ela temos de nos ver. Antero em silêncio dá um gole no copo abaulado. Salvador, guardei esta garrafa durante vinte anos para este momento. Não é a melhor aguardente do mundo, não é mais famosa aguardente do mundo, nem sequer a mais especial, mas é a garrafa de aguardente que comprei da última vez que cá estiveste. Vinte anos depois acho que já lhe posso chamar aguardente velha. Comprei-a com a ideia de ta oferecer, achei que terias a idade certa para provar do néctar que viste o teu tio beber toda a tua vida. Comprei-a e escondia-a atrás da cómoda para que não a encontrasses e nunca mais me lembrei disso até a Júlia aparecer no restaurante. Ao olhar para ela mas sobretudo ao olhar para a maneira como ela olhava para ti lembrei-me da puta da garrafa! Antero começa um misto de riso e choro como nunca eu tinha visto, vinte anos depois podia finalmente expirar aquele ar fétido que nos tinha enchido a todos os pulmões naquela noite há vinte anos. Mas era injusto, eu pude viajar, apanhar ar em muitos sítios que nem nunca tinha imaginado existirem, mas ele, ele não, ele ficou ali vinte anos seguidos sem nunca expirar para fora do bairro uma só vez. O Antero era de facto um daqueles homens em vias de extinção, ria e chorava como já ninguém ri nem chora. A rir o Antero enchia uma sala, a chorar esvaziava-a com a mesma intensidade que uma máquina de fazer vácuo. Bebi um trago como quem lhe fazia um brinde e ele sorriu, Deixa estar, era só uma coisa que tinha no olho. Frente a frente de copos erguidos ouvimos o telefone tocar. O Antero ainda tinha o mesmo telefone de disco que eu lá tinha deixado há vinte anos. Levantou-se e foi atender. Sim, sim minha querida, ele está aqui, ainda não se foi embora, não sei se é boa ideia, talvez mais tarde, eu pergunto-lhe, não te preocupes ele veio para ficar. Antero teve toda esta conversa de frente para mim. Apesar de nunca ter tido filhos nem se lhe conhecer histórias sobre uma mulher que o aturasse a esse ponto, o Antero era pai e eu e a Júlia seriamos sempre os seus únicos filhos. A Júlia tinha telefonado um bocado preocupada, o Antero tinha-a acalmado, mas eu estava cada vez mais. Mais concentrado em resolver o que ali me tinha trazido. Ao fundo do corredor, e três portas mais à frente, deitada na cama, ela já sabia o que me iria responder.

Friday, February 1, 2013

09_Júlia


© Herberto Smith
júlia_Desligada do telefone olha para a fotografia que tem em cima da mesa de cabeceira. Mãe! Entra no quarto o primeiro dos seus dois pequenos filhos. Diz João. O pai disse para te perguntar onde está o fato de macaco azul. Sorrindo com o mesmo sorriso de há nove anos segura na mão do filho e diz-lhe: João tu já és um homem não és? Claro, mãe, sou o teu homenzinho, rindo de orgulho como sempre que repetia a frase solicitada. Então preciso que vás à garagem e no roupeiro por cima da mesa do pai, na caixa de cartão branca da esquerda, encontres uma caixinha que tem escrito numa etiqueta “coisas”. Trazes essa caixinha à mãe? Claro, mãe. Começando a postura de corrida saltitante que o caracterizava, Júlia interrompe-o, sem perder a compostura de quem ama mas quer educar. Não te estás a esquecer de nada? Sim, tenho de ter muito cuidado a subir o escadote, que já é velhote… E?! João, a saltitar no entusiasmo de cumpridor de tarefas faz o esgar da interrogação típica dos seus nove anos. E?! Insiste Júlia. E, não te esqueças de levar o fato de macaco azul do pai. Onde? Em cima da cama a olhar para ti. João ri, agarra o fato de macaco, coloca a postura de corrida e sem se poder contar até 2, já está pelo corredor a correr em direção à garagem, onde o pai o espera. Júlia tem “coisas” para relembrar e precisa de uma pausa na sua atarefada lavagem, engomagem e arrumagem diária de coisas. Mas estas “coisas” são outras coisas e cabem todas numa pequena caixa com etiqueta, que entra agora no quarto pelas mãos do seu filho João. Foste rápido. Sim, o Pai pediu-me outro recado. Pediu-me para ir com ele buscar o Toninho, posso? Podes, João. Sem marido ou filhos em casa, Júlia pode agora virar a fotografia dos quatro na mesa de cabeceira e abrir a caixinha de “coisas” fechadas à vinte anos. De barriga para cima e de costas bem assentes naquele colchão fazedor de coisas de família, Júlia pode fazer uma coisa que não fazia há demasiado tempo, ali, audivelmente e à luz do dia. Sem nada para lavar, engomar ou arrumar Júlia volta a ter 18 anos e a chorar por “coisas” de há vinte anos atrás.



Tuesday, January 1, 2013

10_Carta

© Herberto Smith
carta_Na mão, era o que ela tinha para mim. Entre a porta e o braço do Antero que a segurava, lá estava aquela folha na mão dela. Queres que vá contigo, ou preferes ir sozinho? Já fizeste mais que suficiente Antero, hoje é entre mim e ela. De olhar desviado no chão, Antero suspira um Vou fazer o jantar. Ele vai e eu entro. Estava à tua espera, diziam os seus olhos. Eu sei. Encosta a porta, pestanejou. Encostei a porta penetrando naquela penumbra que adjectivava o mundo da palavra mãe desde que me consigo lembrar. Estávamos sozinhos como nunca tínhamos estado sozinhos antes. Sem a mediação do meu pai, ou a medicação do Antero, éramos três naquele quarto. Mãe, filho regressado e filho perdido finalmente seríamos a família reunida que tantas vezes ela sonhou. Sem voz própria desde que entrou no avião, levantando o último pé que tinha no continente africano, guardou a voz para a escrita que muitas vezes enchia páginas e páginas das folhas brancas com que o Antero frequentemente a alimentava. Sem nunca escrever frases diretas, a minha mãe escrevia cartas, na maioria para o meu irmão, esta era só para mim:

Salvador,
Conheço-te desde sempre. Sei que nunca pediste para nascer e nisso foste um filho exemplar para mim. Desde a noite em que foste embora porque não aguentavas mais, nisso saíste a mim, que pensei no que te diria quando voltasses. Se fosses como o teu pai não conseguias ir sem espernear ou gritar tudo o que sentias contra mim. Se fosses como o teu pai não conseguias voltar de mansinho para ouvir o que teria para te dizer. Mas não és, não és como o teu pai, como o teu irmão e muito menos não és como eu. Não tenhas medo filho, não fujas mais e agarra o que é teu.
Com todo o amor de mãe que me sobra, adoro-te,
A tua Mãe

Com luz suficiente para me ver as feições de cara, nos olhos da minha mãe estava uma réstia de amor pelo mundo e até um orgulho concentrado de quem gosta sem pedir nada de volta. A olhar-me diretamente nos olhos abriu a boca e numa golfada de ar inspirou todo o oxigénio que a rodeava. Num vácuo emocional ouvi-lhe duas palavras: Salvador, Júlia…

… Mãe!

Ouvindo do lado de fora, Antero sabia agora que o silêncio de Regina seria agora eterno. Ouvindo de dentro, Salvador sabia agora que Antero tinha razão. No rádio ao lado da cama a manifestação contra o governo continuava a subir a Avenida a caminho do Parlamento.