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© Herberto Smith |
ruínas_Ali estavam elas dois mil anos e quatro horas depois. Nós fechados em camioneta da rodoviária nacional a cheirar a gasóleo e sande de panado desde Lisboa fizemos com que o cheiro da erva acabada de cortar fosse o nosso bálsamo anti enjoo tomado logo ali à pressa. À falta de melhor e ainda agarrado ao corrimão no habitual processo de descompressão não conseguia deixar de lhe dar importância a ela. A Júlia seria sempre o meu primeiro amor e as ruínas daquela cidade romana pareciam saber disso mesmo. Júlia era nome de grandiosidade tornada trágica, seja por cheiros de perfume ou por ingenuidades adolescentes, dois em cada três de nós estavam apaixonados por ela. Nada de anormal não fosse ela saber que eu era um dos dois num grupo de três colegas sem mota, nem anos repetidos no currículo. A Júlia só namorava com rapazes velhos demais para ainda andarem na escola, espertos demais para lá irem todos os dias e experientes o suficiente para nunca mostrarem abertamente interesse nela. Júlia sabia tudo isso e pior era inteligente como só imaginava eu poderem ser as miúdas desinteressantes da turma. Salvador, ainda hoje me arrepia o tom com que ela disse pela primeira vez esta palavra a menos de um metro e meio de mim. Salvador sabes que os romanos fizeram tudo isto de propósito? Como numa quebra de tensão, e eram muitas na altura em que crescia vinte centímetros por ano, o som do meu nome estava misturado como só talvez na infância imaginava a minha mãe dizer. Salvador apesar de o sentir repetido mil vezes só foi emanado uma vez em sereia de fazer tremer o mais forte dos companheiros de Ulisses. Salvador? Perguntava agora perante a minha apatia tísica. Não conseguia olhar para ela nem responder, aqui algo foi diferente naquilo que Júlia costumava fazer, ninguém lhe dirigiu a palavra e mesmo assim ela continou. Salvador? Sentes-te bem? Muito. Ainda hoje não sei porque respondi muito mas sei que respondi muito na palavra muito. E ela sorrindo e se calhar só para me ajudar agarrou-me na mão e levou-me da camioneta com cheiro a sande de panado para dentro das ruínas, nesse momento nada me poderia arruinar. Salvador e Júlia entravam nas ruínas, dois mil anos e quatro horas depois da fundação de Conímbriga, de mãos dadas. A turma nunca mais seria a mesma e eu morri e ressuscitei ali mesmo sem saber muito bem o que isso queria dizer no meu futuro. Hoje sei.
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