Tuesday, January 1, 2013

10_Carta

© Herberto Smith
carta_Na mão, era o que ela tinha para mim. Entre a porta e o braço do Antero que a segurava, lá estava aquela folha na mão dela. Queres que vá contigo, ou preferes ir sozinho? Já fizeste mais que suficiente Antero, hoje é entre mim e ela. De olhar desviado no chão, Antero suspira um Vou fazer o jantar. Ele vai e eu entro. Estava à tua espera, diziam os seus olhos. Eu sei. Encosta a porta, pestanejou. Encostei a porta penetrando naquela penumbra que adjectivava o mundo da palavra mãe desde que me consigo lembrar. Estávamos sozinhos como nunca tínhamos estado sozinhos antes. Sem a mediação do meu pai, ou a medicação do Antero, éramos três naquele quarto. Mãe, filho regressado e filho perdido finalmente seríamos a família reunida que tantas vezes ela sonhou. Sem voz própria desde que entrou no avião, levantando o último pé que tinha no continente africano, guardou a voz para a escrita que muitas vezes enchia páginas e páginas das folhas brancas com que o Antero frequentemente a alimentava. Sem nunca escrever frases diretas, a minha mãe escrevia cartas, na maioria para o meu irmão, esta era só para mim:

Salvador,
Conheço-te desde sempre. Sei que nunca pediste para nascer e nisso foste um filho exemplar para mim. Desde a noite em que foste embora porque não aguentavas mais, nisso saíste a mim, que pensei no que te diria quando voltasses. Se fosses como o teu pai não conseguias ir sem espernear ou gritar tudo o que sentias contra mim. Se fosses como o teu pai não conseguias voltar de mansinho para ouvir o que teria para te dizer. Mas não és, não és como o teu pai, como o teu irmão e muito menos não és como eu. Não tenhas medo filho, não fujas mais e agarra o que é teu.
Com todo o amor de mãe que me sobra, adoro-te,
A tua Mãe

Com luz suficiente para me ver as feições de cara, nos olhos da minha mãe estava uma réstia de amor pelo mundo e até um orgulho concentrado de quem gosta sem pedir nada de volta. A olhar-me diretamente nos olhos abriu a boca e numa golfada de ar inspirou todo o oxigénio que a rodeava. Num vácuo emocional ouvi-lhe duas palavras: Salvador, Júlia…

… Mãe!

Ouvindo do lado de fora, Antero sabia agora que o silêncio de Regina seria agora eterno. Ouvindo de dentro, Salvador sabia agora que Antero tinha razão. No rádio ao lado da cama a manifestação contra o governo continuava a subir a Avenida a caminho do Parlamento.



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