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© Herberto Smith |
carta_Na
mão, era o que ela tinha para mim. Entre a porta e o braço do Antero que a
segurava, lá estava aquela folha na mão dela. Queres que vá contigo, ou
preferes ir sozinho? Já fizeste mais que suficiente Antero, hoje é entre mim e
ela. De olhar desviado no chão, Antero suspira um Vou fazer o jantar. Ele vai e
eu entro. Estava à tua espera, diziam os seus olhos. Eu sei. Encosta a porta,
pestanejou. Encostei a porta penetrando naquela penumbra que adjectivava o
mundo da palavra mãe desde que me consigo lembrar. Estávamos sozinhos como
nunca tínhamos estado sozinhos antes. Sem a mediação do meu pai, ou a medicação
do Antero, éramos três naquele quarto. Mãe, filho regressado e filho perdido
finalmente seríamos a família reunida que tantas vezes ela sonhou. Sem voz
própria desde que entrou no avião, levantando o último pé que tinha no
continente africano, guardou a voz para a escrita que muitas vezes enchia
páginas e páginas das folhas brancas com que o Antero frequentemente a
alimentava. Sem nunca escrever frases diretas, a minha mãe escrevia cartas, na
maioria para o meu irmão, esta era só para mim:
Salvador,
Conheço-te desde sempre. Sei que nunca
pediste para nascer e nisso foste um filho exemplar para mim. Desde a noite em
que foste embora porque não aguentavas mais, nisso saíste a mim, que pensei no
que te diria quando voltasses. Se fosses como o teu pai não conseguias ir sem
espernear ou gritar tudo o que sentias contra mim. Se fosses como o teu pai não
conseguias voltar de mansinho para ouvir o que teria para te dizer. Mas não és,
não és como o teu pai, como o teu irmão e muito menos não és como eu. Não
tenhas medo filho, não fujas mais e agarra o que é teu.
Com todo o amor de mãe que me sobra,
adoro-te,
A tua Mãe
Com
luz suficiente para me ver as feições de cara, nos olhos da minha mãe estava
uma réstia de amor pelo mundo e até um orgulho concentrado de quem gosta sem
pedir nada de volta. A olhar-me diretamente nos olhos abriu a boca e numa
golfada de ar inspirou todo o oxigénio que a rodeava. Num vácuo emocional
ouvi-lhe duas palavras: Salvador, Júlia…
…
Mãe!
Ouvindo
do lado de fora, Antero sabia agora que o silêncio de Regina seria agora
eterno. Ouvindo de dentro, Salvador sabia agora que Antero tinha razão. No
rádio ao lado da cama a manifestação contra o governo continuava a subir a
Avenida a caminho do Parlamento.
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