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© Herberto Smith |
mãe_Quero vê-la. Acho que finalmente estou preparado para vê-la. Sei que me vais dizer que ainda é cedo, mas eu quero vê-la agora e não pensar mais nisso, de uma vez por todas eu e ela temos de nos ver. Antero em silêncio dá um gole no copo abaulado. Salvador, guardei esta garrafa durante vinte anos para este momento. Não é a melhor aguardente do mundo, não é mais famosa aguardente do mundo, nem sequer a mais especial, mas é a garrafa de aguardente que comprei da última vez que cá estiveste. Vinte anos depois acho que já lhe posso chamar aguardente velha. Comprei-a com a ideia de ta oferecer, achei que terias a idade certa para provar do néctar que viste o teu tio beber toda a tua vida. Comprei-a e escondia-a atrás da cómoda para que não a encontrasses e nunca mais me lembrei disso até a Júlia aparecer no restaurante. Ao olhar para ela mas sobretudo ao olhar para a maneira como ela olhava para ti lembrei-me da puta da garrafa! Antero começa um misto de riso e choro como nunca eu tinha visto, vinte anos depois podia finalmente expirar aquele ar fétido que nos tinha enchido a todos os pulmões naquela noite há vinte anos. Mas era injusto, eu pude viajar, apanhar ar em muitos sítios que nem nunca tinha imaginado existirem, mas ele, ele não, ele ficou ali vinte anos seguidos sem nunca expirar para fora do bairro uma só vez. O Antero era de facto um daqueles homens em vias de extinção, ria e chorava como já ninguém ri nem chora. A rir o Antero enchia uma sala, a chorar esvaziava-a com a mesma intensidade que uma máquina de fazer vácuo. Bebi um trago como quem lhe fazia um brinde e ele sorriu, Deixa estar, era só uma coisa que tinha no olho. Frente a frente de copos erguidos ouvimos o telefone tocar. O Antero ainda tinha o mesmo telefone de disco que eu lá tinha deixado há vinte anos. Levantou-se e foi atender. Sim, sim minha querida, ele está aqui, ainda não se foi embora, não sei se é boa ideia, talvez mais tarde, eu pergunto-lhe, não te preocupes ele veio para ficar. Antero teve toda esta conversa de frente para mim. Apesar de nunca ter tido filhos nem se lhe conhecer histórias sobre uma mulher que o aturasse a esse ponto, o Antero era pai e eu e a Júlia seriamos sempre os seus únicos filhos. A Júlia tinha telefonado um bocado preocupada, o Antero tinha-a acalmado, mas eu estava cada vez mais. Mais concentrado em resolver o que ali me tinha trazido. Ao fundo do corredor, e três portas mais à frente, deitada na cama, ela já sabia o que me iria responder.
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